Há 53 anos, a crise climática vivenciada pelo Rio Grande do Sul já era prevista a partir das lutas em que se envolveu uma das mais tradicionais entidades do movimento ambientalista brasileiro, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), fundada em abril de 1971.
“A Agapan sempre criticou o modelo de desenvolvimento adotado pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil”, lembra o biólogo, arquiteto e ex-presidente da entidade, Francisco Milanez, que, com 14 anos de idade, aderiu à Agapan quatro meses após a fundação da entidade. O uso intenso, já naquela época, de agrotóxicos na agricultura gaúcha voltada à exportação – e que gerou solos compactados hoje resistentes à absorção das chuvas – constou da primeira denúncia institucional, lembra Milanez.
O autor das críticas foi o agrônomo José Lutzenberger, que havia sido diretor da Bayer, a gigante produtora de venenos agrícolas. Na primeira presidência da Agapan há 53 anos, Lutzemberger, com sua atuação, começou a antever, há mais de meio século, o desastre que abate o Estado.
Naquele mesmo ano, Lutzemberger lança o clássico “O Fim do Futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro”, em que relaciona diferentes noções de tempo, entre passado, futuro e presente para profetizar o agravamento da então emergente crise ambiental e as catástrofes provocadas pela forma de produzir e consumir intensamente tudo.
Milanez presidiu a Agapan em mais de uma oportunidade e ainda hoje integra a sua diretoria. No governo, propôs e coordenou o Plano Rio Grande do Sul Sustentável durante a administração de Tarso Genro (2011-2015) e se dedicou ao capítulo da produção de alimentos orgânicos e energias alternativas entre outros.
As enchentes
As enchentes de agora, segundo Milanez, derivam da opção agropecuária. “É uma contradição para o Estado que criou a legislação ambiental brasileira mas que, a partir de 2019, na primeira gestão do já governador Eduardo Leite (PSDB), passou a retalhar 480 de seus pontos para beneficiar a especulação imobiliária e as monoculturas.” Afirmou ele.
Continuando, lembra o ambientalista que “Tudo era previsível. Quando tivemos as cheias em 2023, as pessoas diziam que aquele era um fenômeno que se repetia apenas de 70 em 70 anos e eu contestava: ‘não, viriam piores e mais frequentes cheias’. Um texto do Lutz, anterior ao livro ‘Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro’, de 1976, já indicava essa situação”.
As secas
“Os grandes agricultores apoiam o plantio de soja na Amazônia, no Centro-Oeste e aqui, mas já tivemos três anos de seca e agora essa chuva que fez perder a safra. Na época em que eu plantava, [a seca] era de 10 em 10 anos. Eu disse em um debate na federação dos grandes agricultores, que agricultura é o ‘lobo da agricultura’, porque está envenenando a própria agricultura e a nós todos”.
Em fevereiro de 2023 a região sul era uma das mais castigadas pela estiagem que afetava mais de 700 municípios entre os Estados do Paraná, Santa Catarina, sendo 400 municípios somente no Estado do Rio Grande do Sul, pela terceira vez consecutiva.
As maiores perdas afetaram as culturas de soja e milho, ambas fundamentais para a economia do Estado. (*)
O diagnóstico da tragédia
Ainda segundo Milanez, “Tínhamos no Rio Grande do Sul, na metade norte, a floresta ombrófila mista, a floresta de araucária, e na metade sul, o Bioma Pampa. A metade norte nós colonizamos, e os colonos cortaram floresta e mataram os indígenas. A partir de 1974, os militares priorizaram e financiaram a soja, que ocupou o norte do Estado, compactando o solo, que virou uma cerâmica impermeável. É isso que está fazendo essa chuva de agora”.
A crítica se estende: “Tiraram das encostas as matas que absorveriam boa parte da água e freariam as chuvas. Aí o rio aguentaria a água descendo. Mas, sem floresta, a água vai para o rio em alta velocidade, logo extravasa e vira enchente. Para piorar, tiraram também as matas ciliares e a terra vai para o rio, que assoreia. Cada vez menos chuva vai resultar em mais enchentes. Foi o que aconteceu em Muçum, a cidade mais atingida, e que não casualmente foi a que mais desmatou no ano passado”.
“Solução? Basta cumprir a lei. É baratíssimo!”
Milanez estima que, para reverter a situação, “bastaria ao governo cumprir a lei, recompondo e cercando matas ciliares e a floresta de encosta, sem grandes investimentos, para não deixar o boi entrar. Em dois anos já se terá recomposta alguma vegetação, diminuirá a velocidade de água e os deslizamentos e aumentará a absorção de água. É tudo baratíssimo”. Ele preconiza ainda hoje, como saída para a humanidade, a reformulação da forma de produzir e consumir: “A sociedade tem que ter outra forma de viver. As coisas que poluem mais hoje são as guerras e o estilo de vida one way, descartável. Ambas precisam ser revisadas”.
Ou seja, uma das soluções está em preservar as matas ciliares no curso dos rios e as áreas de preservação das encostas, conforme estabelece o Código Florestal Brasileiro, se ele for cumprido.
Matéria original do jornalista Carlos Tautz , 20 de junho de 2024, para o site OECO.org.
Edição complementar Paulo Machado
Leia a matéria original sobre as causas das enchentes em: https://oeco.org.br/reportagens/da-critica-ao-modelo-de-desenvolvimento-as-enchentes-no-rio-grande-do-sul/
(*)Leia a matéria original sobre a seca em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/estiagem-causa-prejuizos-agricultura-e-ameaca-o-abastecimento